Seção 7 Resumos (ver abaixo)
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Coordenação:
Carolin Overhoff Ferreira (São Paulo)
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Terras em Transe - Éticas e Estéticas nos Cinemas Lusófonos
Desde meados dos anos 80 destacam-se duas tendências dentro do panorama do cinema mundial, associadas a diretores dotados de uma distinta marca autoral: o novo realismo e o filme-ensaio. Ao lado de realizadores internacionais de grande prestígio, como, por exemplo, Jean-Luc Godard, Abbas Kiarostami, Harun Farocki, Gus van Sant, Jia Zhangke e Apichatpong Weerasethakul, há diversos nomes das cinematografias lusófonas afinados com estas tendências e não menos celebres: os portugueses Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Canijo e Pedro Costa, os brasileiros Beto Brant, Fernando Meirelles, José Padilha, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, o guineense Flora Gomes e o angolano Ruy Duarte de Carvalho, entre outros.
Todos estes cineastas debruçam-se sobre os múltiplos impactos da globalização, sem esquecer o legado direto ou indireto do imperialismo europeu, ou a persistência de outras formas de centralização de poder. Esteticamente, seus filmes procuram estabelecer uma relação forte com a realidade, ao mesmo tempo que interrogam a representabilidade da mesma, confrontando e envolvendo o espectador através de visões pessoais e não conclusivas acerca das questões éticas em jogo, não raramente instigadas pelas possibilidades que o digital oferece como nova ferramenta cinematográfica.
A atenção acadêmica a este tipo de cinema de cariz ensaística nos tem brindado publicações recentes dedicadas ou ao novo realismo (Nagib & Mello, 2010) ou ao filme ensaio (Rascaroli, 2009). Porém, apesar de possuírem características em comum – sendo a transgressão das fronteiras entre ficção e realidade, bem como uma descrença na objetividade da representação as mais significativas – as duas tendências nunca foram relacionadas ou pesquisadas designadamente no contexto dos cinemas de língua portuguesa.
Ao propor esta ligação, esta seção gostaria de convidar pesquisadores que trabalham sobre cineastas de língua portuguesa (Brasil, Portugal, Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), associados ao novo realismo ou ao filme ensaio, ou a ambos. Pretende-se, desta forma, apurar o conhecimento sobre o papel que estes cineastas estão desempenhando no contexto do cinema mundial, bem como interrogar até que ponto é possível falar de um fenômeno importante no mundo lusófono, ou seja, se existe de fato um conjunto expressivo de filmes à procura de éticas e estéticas para apresentar as “terras em transe” da globalização. Oferecer um fórum para comparar os filmes ensaísticos de língua portuguesa visa esclarecer ainda como estes se posicionam entre si, levando em consideração a habitual dificuldade de pensar a diversidade no espaço lusófono, devido à persistência das antigas utopias sobre a homogeniedade cultural – das quais a lusofonia e o luso-tropicalismo são as mais celebres –, pois perpetuam uma postura esperançosa perante o mundo que resultou dos “descobrimentos” portugueses.
Participantes:
Yanete Aguilera de Matos (São Paulo): «Os percursos estéticos e políticos de Pedro Costa»
Ana Barroso (Lisboa): «“Hell is around the corner”: espaços de violência em “Transe” de Teresa Villaverde. Do microcosmo ficcional ao macrocosmo real»
Anabela Dinis Branco de Oliveira (Vila Real): «Manoel de Oliveira: o Douro como metáfora»
Renato S. Guimarães (Paris): «Multiplicação dialógica e construção da realidade, o caso do cinema documentário»
Ute Hermanns (Fortaleza): «Resgatar a memória – realismo no cinema de João Moreira Salles e Eduardo Coutinho»
Catarina Maia (Coimbra): «Nenhuma ordem é aceitável se não for uma ordem fílmica»
Lúcia Nagib (Leeds): «O autor auto-performático: Ética em João César Monteiro»
Liliana Navarra (Lisboa): «A trilogia de Deus: a ética social de um individuo no limiar da sociedade»
Carolin Overhoff Ferreira (São Paulo): « Olhos nos olhos – estetização e ética nos filmes de Susana Sousa Dias»
Maria Manuela Pardal Kruehler (Berlin): «O cinema português entre os séculos XX e XXI: dos limites da ficção aos limites do real»
Daniel Ribas (Aveiro): «O interior no cinema português: João Canijo e António Reis/Margarida Cordeiro»
Ismail Xavier (São Paulo): «A teatralidade como vetor do ensaio fílmico no documentário brasileiro contemporâneo»
Resumos
Yanete Aguilera de Matos (São Paulo)
Os percursos estéticos e políticos de Pedro Costa
Na sequência do museu Gulbenkian de Juventude em marcha, obra de Pedro Costa, relacionam-se duas maneiras de tornar visíveis objetos, procedimentos e questões considerados do domínio da arte: a do próprio filme e a do museu visualizado nele. Embora ambos procedam por associações e construam percursos para o espectador, suas ligações não se dão apenas por entrecruzamento de semelhanças, mas pelas tensões que afirmam uma relação de força entre seus diversos aspectos plásticos e históricos. Dentre as várias oposições estéticas, a mais importante é aquela que se estabelece entre a figura de Ventura, o pedreiro cabo-verdiano que ajudou a construir o museu, e as obras de arte da cultura ocidental – quadros, estátuas, mobiliário e arquitetura. Trata-se de pensar as tramas estéticas que se tecem entre eles e que permitem uma relação inédita entre sujeito e objeto, dando visibilidade àquilo que até então não era visível, como, por exemplo, a distribuição e disposição dos lugares, que determinam quem toma e quem não parte desse espaço supostamente comum, seja ele o do museu ou o do próprio filme.
Ana Barroso (Lisboa)
“Hell is around the corner”: espaços de violência em “Transe” de Teresa Villaverde. Do microcosmo ficcional ao macrocosmo real
Partindo do princípio que o cinema não pode ser olhado nem pensado como uma mera ilustração de várias teorias filosóficas, importa atentar na sua capacidade de gerar pensamento, ou seja, como terreno fértil de questionação do real. O espectador que pensa o cinema deve também ter em conta que o cinema se pensa a si próprio e não é um mero receptáculo de interpretações e ideias pré-concebidas, mas, - e embora possa parecer um paradoxo - é acção sobre o presente real que a câmara tira e devolve ao mesmo tempo. Filósofos como Bazin, Kracauer, Cavell e Badiou insistiram na importância da realidade enquanto matéria-prima do cinema, permitindo ao espectador reflectir o que vê projectado no ecrã para, mais tarde, repensar a problemática do real e, em última instância, descobrir um mundo completamente novo. Neste sentido, há que revalorizar o cinema, não enquanto mero dispositivo de representação do real, mas, pelo contrário, na sua ligação profunda com este para que o filme possa acontecer para o espectador (como defendeu Bergson). A experiência cinemática pressupõe um envolvimento do espectador com as imagens projectadas, que deve ser emocional e fluído primeiro para, de seguida, ser criativa e crítica e, consequentemente, filosófica, porque o espectador faz parte do processo criativo do mundo fílmico (Frampton). A estética fílmica ensaiada por Villaverde assenta em longas sequências e em planos fixos, dando ao cinema um tempo de pensamento, estético, mas também ético, desprendido da narrativa clássica para se ancorar na materialidade do espaço enquanto repositório de uma globalização inevitável, mas também feroz e violenta. E, nesse sentido, o filme parte de um espaço libertário exterior para se enclausurar num espaço interior, afastado do mundo. Não é um filme sobre o espectáculo da brutalidade da violência, mas antes uma indagação cinemática onde a ficcionalização de territórios invisíveis remete para uma geografia territorial e, em última instância, do humano. E, neste sentido, a verdade da ficção não pode ser separada da ficção da verdade.
Anabela Dinis Branco de Oliveira (Vila Real)
Manoel de Oliveira: o Douro como metáfora
Manoel de Oliveira protagoniza uma forte, inexplicável e inadjectivável ligação ao Douro. Projeta, em Douro Faina Fluvial (1931), Aniki-Bobó (1942), O Pintor e a Cidade (1956), Vale Abraão (1993) e Porto da minha Infância (2001), olhares sobre o Douro, vozes sobre a magia, a força e a alavanca simbólica de um rio. Projecta a omnipresença e a omnipotência de um Douro de socalcos, quintas, pontes e ancoradouros. Constrói a imagem de um Douro de rituais vinhateiros e de desejos imaginários e analisa a inevitável atracção que ele exerce sobre as personagens. O olhar do cineasta funde-se no Douro das palavras, das imagens, da montagem cinematográfica e nos socalcos da reflexão e da interrogação! Quem é o Douro de Manoel de Oliveira? É uma metáfora? É a metáfora de um olhar polifónico? Uma construção da Imagem? É a metáfora de um país, de uma obra, de um percurso acidentado, de uma luta de gigantes? O Douro é um Homem ou uma Mulher? É a metáfora das fronteiras transgressoras e esbatidas entre ficção e realidade?
Renato S. Guimarães (Paris)
Multiplicação dialógica e construção da realidade, o caso do cinema documentário
A ruptura provocada por Jean Rouch, ao realizar filmes entre documentário e ficção nos quais a proposta de filmar correspondia a transformar o real em imaginário (Commoli), desencadeou uma subversão de gêneros. Encontramos, atualmente, nas propostas do cineasta português Pedro Costa e dos brasileiros Karim Ainouz e Marcelo Gomes desdobramentos da forma rouchiana de produção cinematográfica. A presente comunicação tem como objetivo apresentar uma proposta de compreensão a respeito de como se dá a relação entre a captação da realidade através da câmera e a (re)construção da realidade pelo filme. Para isso concebemos a necessidade de se estudar o processo de construção do filme como uma experiência entre diversas ações: daquele que filma, do objeto filmado e da experiência espectatorial. A partir da contextualização do cinema documentário discutiremos tensões emergentes na relação entre os diferentes posicionamentos de si em face do outro, levando em conta o conjunto de ações simbólicas (Boesch, 1995) empreendidas em sua elaboração. O construtivismo semiótico cultural em psicologia (cf. Simão,2003, 2005, 2008) toma como referencia as obras de Vygotsky e Bakhtin, no sentido de compreender partilhas e divergências em processos de construção de significados por sujeitos ativos em relação. As psicologias de Ernst Boesch e Jaan Valsiner desdobram aspectos discutidos pelos precursores do construtivismo semiótico-cultural, enfatizando a compreensão das ações humanas como ações simbólicas. Discutiremos como esta perspectiva de compreensão da ação contribui para o entendimento da praxis no cinema documentário.
Ute Hermanns (Fortaleza)
Resgatar a memória – realismo no cinema de João Moreira Salles e Eduardo Coutinho
O realismo nos documentários Santiago de João Moreira Salles, Edifício Master e O Fim e o Princípio de Eduardo Coutinho pode ser visto como forma de construção da identidade democrática brasileira. Os documentários acima mencionados abordam, por meio da entrevista filmada, histórias de um leque amplo de cidadãos brasileiros, que vivenciaram o espaço urbano ou o espaço do campo. Nestes filmes, a história do país mostra-se em vários micro-relatos, comentados e guiados pelo Leitgedanke do respectivo diretor. Hoje em dia, os micro-relatos se tornam cada vez mais elucidativos para compreender melhor a diversidade da sociedade brasileira que ao todo se torna mais global e, com isso, mais sujeita às conseqüências da globalização. Anonimato, solidão e isolação nas grandes metrópoles ou no campo são os temas abordados, mas os filmes também mostram a capacidade do indivíduo de atribuir um sentido especial à vida individual. Pode até, para completar, ser traçado um paralelo com um documentário alemão, com o título 24 Stunden Berlin, emitido pela televisão RBB, que mostra durante 24 horas os cidadãos de Berlim que formam o rosto da capital alemã. Aqui também, os micro-relatos servem como representações de uma cidade com os problemas de um mundo globalizado.
Catarina Maia (Coimbra)
Nenhuma ordem é aceitável se não for uma ordem fílmica
A obra de João César Monteiro oferece uma recusa ao ilusionismo naturalista, ao jogo convencional em que o espectador esquece que está perante uma ilusão. Há no autor um absoluto radicalismo ético: “o cinema (...) só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência”. Influenciado pelas teorias bazinianas e pelos Cahiers du Cinema, Monteiro segue a linha de um cinema autoral. A par de uma evidente relação privilegiada com a autonomia do real, com o que pré-existe e que a câmara regista, dá-nos a fascinante percepção de que os seus filmes são a memória de uma fixação que devolve não a realidade mas as suas próprias fixações perante esta. Isto resulta da incorporação complexa e ambígua do real que é feita numa linguagem, por uma técnica. Tal como dizia Bazin, “toda a técnica remete para uma metafísica”. Nesta apresentação quero explorar os modos como na obra de Monteiro essa ligação da técnica com uma ética fílmica é determinante para a compreensão dos seus filmes.
Lúcia Nagib (Leeds)
O autor auto-performático: Ética em João César Monteiro
Neste trabalho, irei enfocar uma seleção de filmes dirigidos por João César Monteiro que se prestam à definição de ‘autobiográficos’, entre outros motivos, por serem protagonizados pelo próprio diretor. São eles: a ‘trilogia de João de Deus’, composta de Recordações da casa amarela (1989), A comédia de Deus (1995) e As bodas de Deus (1998), além de Le bassin the J.W. (1997) e Vai e vem (2003). Minha escolha se deve menos à suposta representação na tela da vida real do protagonista do que à apresentação do contingente histórico que ocorre nestes filmes de maneira simultânea à sua produção, isto é, ao fato de que o diretor provoca os eventos fílmicos, tanto quanto possível, no mundo objetivo. Ligado como poucos ao realismo fenomenológico baziniano, Monteiro é, porém, ao mesmo tempo, um adepto fiel do realismo do dispositivo cinematográfico. Defendo a hipótese de que o uso de tais procedimentos deriva de uma ética, conceito este que irei testar, com relação à obra monteiriana, através da análise do gênero autobiográfico, das prerrogativas autorais e do realismo de cunho tanto fenomenológico quanto auto-reflexivo, no interior e para além do contexto representacional.
Liliana Navarra (Lisboa)
A trilogia de Deus: a ética social de um individuo no limiar da sociedade
João César Monteiro foi um dos maiores realizadores cinematográficos da vanguarda portuguesa dos anos 60, conhecida por “Novo Cinema”. Controverso, este enfant terrible do panorama cultural português foi sempre considerado pelos media e pelo público uma figura provocadora, uma porta aberta ao escândalo. Mas além de cineasta, João César Monteiro foi também um grande escritor, um alquimista de palavras, conseguindo misturar magistralmente a linguagem erudita aos ditados populares. As indecências e as vulgaridades transformavam‐se, através da sua caneta, em delírios poéticos. Atrás de cada palavra, de cada estratagema estilístico, escondia‐se um autor não compreendido, que só uma visão abrangente da obra poderia revelar inteiramente. O cinema era o meio através do qual conseguia canalizar a sua infinita cultura, sendo disso prova evidente as frequentes citações literárias. Como afirma Vítor Silva Tavares, editor de &Etc e seu grande amigo “João César era un grande poeta (…) o maior escritor português do século XX”, ”apetece dizer que os filmes do César são mais “escritos” (ou “escritas”) do que as suas representações, ou ilustrações, audiovisuais.” Os seus textos eram exemplo de grande maestria linguística - “alquimie du verbe”, come diria Rimbaud. As palavras, que extrapolava sempre dos textos em língua original, eram continuamente remexidas, incluídas em contextos plurívocos e diferentes da fonte textual originária, uma verdadeira operação de descontextualização. Este processo permitia‐lhe criar novas cosmogonias linguísticas no seu universo pluridiscursivo, oferecendo olhares diferenciados e várias interpretações verbais sobre o mundo que o rodeava. Mas Monteiro, em vez de promover um ensaio escrito, preferiu utilizar como metalinguagem a linguagem cinematográfica. O que se quer aqui apresentar são três exemplos de filme‐ensaio (Recordações da Casa Amarela, A Comédia de Deus e As Bodas de Deus) onde o realizador nos quer propor uma reflexão sobre o seu mundo urbano, sob a efígie do excesso e do voyeurismo, através de uma personagem que consegue ao longo da trilogia vestir a pele do pobre, do sem abrigo, do vendedor de gelados, do rico latifundiário, do prisioneiro e do doente mental. Na representação dessas personagens há um profundo conhecimento da sociedade e das suas várias facetas. Os filmes de João César Monteiro, portanto, podemser vistos como verdadeiras análises sociológicas da realidade portuguesa pos‐fascista.
Carolin Overhoff Ferreira (São Paulo)
Olhos nos olhos – estetização e ética nos filmes de Susana Sousa Dias
Diversos filmes de arquivo recentemente realizados no Brasil e em Portugal demonstram como o audiovisual pode servir como ferramenta estética para debater questões éticas relacionadas com a história, a política e a presença das mídias na sociedade contemporânea. Podemos elencar, por exemplo, os filmes de Susana Sousa Dias, Natureza Morta (2005) e 48 (2010), e João Canijo, Fantasia Lusitana (2010), de Marcelo Masagão, Nós que aqui estamos por vos esperamos (1998), e de Eduardo Coutinho, Um Dia na Vida (2010). Concentrar-me-ei neste trabalho nos filmes de Susana Sousa Dias que, ao montar e trabalhar fotografias de presos políticos, documentários propagandísticos ou footage da guerra colonial, reinterpreta documentos históricos que serviam à constituição da estética do Estado Novo portugues. Analisarei como as intervenções nas imagens e no som estabelecem um novo regime de sentimentos e percepções. Usarei o conceito de ética no sentido de Emmanuel Levinas, ou seja, como sentimento de responsabilidade perante o outro. Realçarei como as fotografias dos presos políticos são empregadas como elemento chave em ambos os filmes para incentivar esta responsabilidade, tanto em relação com o outro quanto com a própria história.
Maria Manuela Pardal Kruehler (Berlin)
O cinema português entre os séculos XX e XXI: dos limites da ficção aos limites do real
Uma análise centrada nas obras de Pedro Costa, João Canijo e Miguel Gomes que, numa perspectiva multidisciplinar, pretende abordar e discutir aspetos cinematográficos e narratológicos, assim como culturais e sociológicos. Temáticas importantes para a caracterização e reflexão sobre a sociedade portuguesa contemporânea, tais como as migrações, a integração de minorias, o racismo, a marginalização social, as relações sociais e familiares, serão abordadas nesta comunicação.
Daniel Ribas (Aveiro)
O interior no cinema português: João Canijo e António Reis/Margarida Cordeiro
Nos últimos 30 anos o cinema português tem sofrido profundas alterações, que dizem respeito à produção, às temáticas e à linguagem cinematográfica. Um dos caminhos explorados do cinema português no contexto da Escola Portuguesa – denominação para filmes internacionalmente reconhecidos no fim dos anos 70 e ao longo dos anos 80, sobretudo na França – foi o interior de Portugal, uma zona sociologicamente relevante para a constituição de um imaginário português contemporâneo. O cinema de António Reis e Margarida Cordeiro tornou-se famoso por aprofundar esse interesse. Com filmes como Trás-os-Montes, Ana ou Rosa de Areia, a dupla de realizadores regressou ao “Portugal profundo” para lançar um olhar sobre as raízes ancestrais da identidade nacional. Os filmes – e, em particular, Trás-os-Montes – são narrativas muito particulares que partem de um impulso documental para se inundarem de ficção, num registro próximo do realismo mágico. O olhar destes realizadores é, assim, carregado de um misticismo muito particular. Já no final dos anos 90, João Canijo surge no cinema português com um notável fulgor, realizando quatros longas-metragens criticamente aplaudidas. Também em Canijo se vê uma vontade de regressar ao interior, pelo menos em filmes como Sapatos Pretos, Noite Escura e – particularmente – em Mal Nascida Canijo propõe um olhar realista e bastante violento sobre o interior português. Desta forma, parece, à primeira vista, radicalmente diferente da proposta de António Reis e Margarida Cordeiro. Nesta comunicação pretendemos fazer uma análise comparativa das obras destes realizadores, com particular incidência nos filmes Trás-os-Montes e Mal Nascida, abordando a forma como retratam o interior português: em termos temáticos, estéticos e de produção.
Ismail Xavier (São Paulo)
A teatralidade como vetor do ensaio fílmico no documentário brasileiro contemporâneo
Numa primeira formulação, o filme-ensaio foi visto como experiência derivada do documentário, mas podemos vê-lo também a partir do cinema experimental e de certas formas de ficção. O melhor, no entanto, é pensá-lo como superação dessas fronteiras, como exercício livre das regras de gênero. O que ele requer é a presença explícita de uma dimensão reflexiva que opera sobre questão pré-existente e nos obriga a reconhecer a imagem ou a cena como “forma que pensa” (Godard). Como ‘forma’, ele supõe uma arquitetura subjacente ao tateio do pensar e se constitui de operações que a crítica deve caracterizar, como o fez André Bazin a propósito de Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker, quando apontou a peculiar relação entre voz over e imagem como experiência cognitiva afinada à ideia de ensaio. O documentário brasileiro atual é rico em propostas formais que o projetam neste campo de debate. Meu objetivo é, a partir de breve referência contextual, analisar Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho. Se filmes como Santiago (2007), de João Moreira Salles, são exemplos de ensaio que se constitui pela justaposição entre voz over e imagem, Jogo de cena, ao contrário, se apóia somente na entrevista em som direto. Seu esquema dá sentido especial ao princípio de unidade de espaço (aqui, o palco de um teatro) e explicita a teatralidade implicada nos depoimentos. Estes são um misto de testemunho e performance, seja quando mulheres voluntárias narram sua própria experiência, seja quando atrizes seguem um script. Torna-se difícil discernir entre locuções em que há identidade entre o sujeito da enunciação e o do enunciado e locuções em que isto não ocorre. Os relatos de vida são, cada qual a seu modo, expressivos, embora não por força ‘verdadeiros’. Tudo obriga a repensar a relação entre registro documental e teatro, pessoa e personagem, dando ensejo a uma reflexão sobre o ‘sujeito’ como um constructo. A questão do ‘eu’ não está na presença do autor-cineasta mas na ambígua natureza dos sujeitos diante da câmera, na instabilidade do seu lugar de fala.