Seção 1 Resumos (ver abaixo)
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Coordenação:
Burghard Baltrusch (Vigo)
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"O que transformou o mundo não foi uma utopia, foi uma necessidade": Utopia e Diversidade em José Saramago
Aquando do Fórum Social Mundial de 2005, José Saramago tinha-se mostrado eminentemente crítico em relação ao conceito da utopia: “Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários. Mas claro não posso, não devo e nem o faria. [...] há que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à ideia da utopia. [...] se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substitui-la-ia por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã. [...] Porque o amanhã é a única utopia [...]“. Apesar de existirem inúmeros estudos que relacionam a obra saramaguiana com aspectos de utopias sociais ou políticas, a sua escrita – nomeadamente na sua vertente de cronista, bloguista ou ensaísta – oscila, em termos ideológicos, entre uma concepção marxista da história e a sua transformação ou em “dialéctica negativa” (Adorno) ou em "semiótica da resistência" (Tarasti), sempre a um passo do activismo político. Também os seus romances costumam aludir a um programa ético-político e a uma crítica da sociedade e cultura ocidentais, enquanto sugerem um processo revolucionário que tem de ser construído no interior do sistema (apesar das cumplicidades inevitáveis).
Esta secção convida especialmente aquelas leituras da obra de José Saramago que trabalham sobre a vertente ‘engajada’ da sua escrita, que se foi evidenciando, cada vez mais, ao longo da última década da sua vida, não só nos textos ficcionais, mas também nos numerosos epitextos que os foram acompanhando. Entre os temas, que a secção gostava de debatir, estão as críticas e questionamentos que a obra coloca em relação aos sistemas patriarcal, democrático ou económico-político ocidental, como também tocante aos mitos e às concepções identitárias tradicionais. Mas, além da ideia da obra saramaguiana como grande comentário crítico e de intervenção em relação à actualidade cultural e política, também nos interessa uma apreciação crítica das conhecidas reticências de Saramago no que diz respeito aos convencionalismos literários, como seriam, por exemplo, o romance histórico ou os conceitos narratológicos estruturalistas. Finalmente, a secção gostava de incluir, também, tratamentos do fenómeno tanto mediático como político-cultural no qual o autor se tem vindo a transformar nas últimas décadas.
Todas as perspectivas metodológicas serão bem-vindas, contudo, a secção pretende conferir certa preferência a marcos teóricos relacionados com a crítica feminista, a crítica de ideologias, o pós-colonialismo, as teorias da identidade e alteridade e as ciências da cultura em geral.
Participantes:
Isabel Araújo Branco (Lisboa): «José Saramago: «Cadeira» ou a queda de Salazar»
Ana Paula Arnaut (Coimbra): «José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde»
Raquel Baltazar (Lisboa): «A convergência do espaço literário, cultural e político como questionadores de uma identidade social em José Saramago»
Verena Bauer (Wien): «A imagem da Áustria na obra de José Saramago: Construções de identidade nacional e perspetivas históricas»
Orlando Grossegesse (Braga): «O 'sublime-pavoroso' e a 'Estética da resistência' em Saramago»
Yvonne Hendrich (Mainz): «”Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso”: Realität und Fiktion in José Saramagos Roman A Viagem do Elefante“
José Cândido de Oliveira Martins (Braga): «Memorial do Convento de José Saramago: crítica e utopia»
Ângela Maria Pereira Nunes (Mainz/Germersheim): «Der Spanische Bürgerkrieg als portugiesischer Erinnerungsort: Zur Darstellung der Guerra Civil bei José Saramago»
Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (Coimbra): «O imaginário e a transcendência em A Ilha Desconhecida»
Andreas Schor (Villars-sur-Glâne): «A Mudança da Utopia nos Primeiros Romances de Saramago»
Fernando Venâncio (Amsterdam): «José Saramago: o ritual de uma voz-off portuguesa»
Resumos
Isabel Araújo Branco (Lisboa)
José Saramago: «Cadeira» ou a queda de Salazar
O conto «Cadeira», inserido em Objecto Quase (1978), corresponde a uma leitura profunda do significado simbólico e prático da queda da cadeira do ditador português Oliveira Salazar em 1968. Esta é uma reflexão literária sobre a ditadura, a ideologia fascista e o estado do País ao longo dessas quase cinco décadas, mas também sobre o império português então quase a desaparecer. Atentando no rigor semântico com grande ironia, o narrador apresenta-nos traços de intertextualidade com Luís de Camões, Alexandre Herculano e William Shakespeare, entre outros. Nesta comunicação pretendemos analisar a imagem de Portugal e do poder político durante a ditadura presente em «A cadeira» e as estratégias narrativas adoptadas.
Ana Paula Arnaut (Coimbra)
José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde
Partindo de alguns textos fundadores do conceito „utopia‟, pretendemos pôr em evidência que, no caso de José Saramago, em regra, a procura de uma (im)possível sociedade livre e perfeita assume contornos de tonalidades diversas. O desejo de cenários diferentes daqueles em que vivemos, mais justos e fraternos, não acarreta, necessariamente, a ideia de deslocalização ou de relocalização espacial implicada nas tradicionais utopias. Pelo contrário, acreditamos que o ideal utópico saramaguiano, ou o que entendemos como tal, supõe uma busca que se traduz num processo de (re)aprendizagem que começa e acaba no próprio ser humano. Para tal, há que acreditar na capacidade e no poder do Homem para lutar contra diversas espécies de adversidades, de obstáculos e de violências. Afinal, como disse, em 1997, a Eduardo Sterzi e Jerônimo Teixeira, “Sabemos mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos”. No delinear destes percursos de humana aprendizagem verificaremos, ainda, a presença (aparente) de afinidades com certos vetores da tradição religiosa que o autor sempre recusou e a aproximação (efetiva) a uma outra dimensão espiritual: a de certos rituais maçónicos.
Palavras-chave: utopia, aprendizagem, vontade, Homem
Raquel Baltazar (Lisboa)
A convergência do espaço literário, cultural e político como questionadores de uma identidade social em José Saramago
A obra Levantado do Chão (1980) de José Saramago concretiza o paradoxo metaficcional da consciencialização do homem sobre a sua alienação sócio-política. Uma obra sobre a repressão centrada na ditadura de Salazar que se converte numa interpretação social de um mundo em colapso ideológico. A obra A Caverna (2000) é uma metáfora do obscurecimento da razão que incapacita a criação do conceito de comunidade ao apresentar uma indagação constante sobre a adaptação do ser humano a uma realidade política que aprisiona mental e fisicamente os indivíduos. A obra Ensaio sobre a Cegueira (1995) completa esta viagem de libertação política, ideológica e social através de um exercício de autognose em forma de literatura de denúncia, onde ocorre o resgate da experiência humana através de situações de epidemia e prisão sugerindo uma epifania de cariz político. Estas obras permitem discutir a anulação da identidade como elemento fundamental para a construção de uma ideologia. Esta análise procurará evidenciar a convergência do espaço literário, cultural e político como questionadores de uma identidade social.
Verena Bauer (Wien)
A imagem da Áustria na obra de José Saramago: Construções de identidade nacional e perspetivas históricas
Numa das suas últimas obras romanescas, José Saramago manda em viagem para Áustria um grupo de portugueses liderados por um elefante e um indiano: A viagem do elefante, um romance baseado em fatos históricos, exemplifica a forte relação político-cultural de Portugal com o resto da Europa, neste caso especificamente com a Áustria. Além de estereótipos nacionais, Saramago chama atenção ao contato entre identidades e nacionalidades européias, ironizando os costumes e crenças das diferentes comunidades, desmontando assim os mecanismos que levam à construção de identidade e ao estabelecimento de uma história oficial. O que interessa nesse contexto é, por um lado, a visão saramaguiana da história européia a exemplo de Portugal e Áustria (em A viagem do elefante), tendo em conta a preferência do próprio autor entre uma comunidade ibérica com laços mais para com a Ámerica Latina do que para a própria Europa (como desenrolado pelo autor em “O (meu) iberismo”). Por outro lado, surge também o assunto da (dupla) apropriação do colonizado em A Viagem do Elefante que outrossim merece ser discutido. O objetivo da palestra será analisar a problemática da construção de identidades nacionais, sobretudo no que se refere ao contato entre Portugal e Áustria na ótica de José Saramago frente ao contexto histórico-político europeu. Como base da análise interdisciplinar servirão conceitos das ciências culturais e da teoria literária.
Orlando Grossegesse (Braga)
O sublime-pavoroso e a «Estética da resistência» em Saramago
O pequeno José abomina o prazer estético que deveria sentir ao olhar para a representação do martírio de S. Bartolomeu em Mafra – um episódio identificado pelo próprio autor como vivência inicial de uma mundividência e, transposta à escrita, de uma poética cuja génese, de facto, pode ser observada desde as crónicas, nomeadamente na discussão de artes plásticas (criação / recepção). Ao longo da trajectória da obra saramaguiana desenvolve-se uma abordagem do sublime-pavoroso que se opõe ao conceito de Kant e Schiller. No entanto, Saramago reinterpreta sobretudo o segundo para chegar a uma redefinição da relação entre representação viva do sofrimento, a fim de suscitar um misto de pavor e afecto compassivo, e a representação da resistência contra o sofrimento que, porém, não encontra a sua força na “liberdade interior do ânimo” de Schiller. Nomeadamente a partir de Manual de Pintura e Caligrafia, Saramago propõe outra educação estética do Homem a que chamamos, inspirado pela comparação com Die Ästhetik des Widerstands (1975-81) de Peter Weiss, precisamente a educação para a «Estética da resistência». Em diálogo com o Inferno de Dante, ambos autores têm o maior interesse de definir uma nova competência estética (Aisthesis) perante o pavor causado pelo mundo pós-holocausto e em oposição à tradição do Iluminismo. Chega-se assim a um sentido político do sublime-pavoroso como elemento fundamental de uma estética de transgressão que, no caso de Saramago, é discutida, de forma romanceada, através de Ricardo Reis perante a realidade de 1936, e que experimenta a sua maior prova n’ O Ensaio sobre a Cegueira.
Yvonne Hendrich (Mainz)
”Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso”: Realität und Fiktion in José Saramagos Roman A Viagem do Elefante
Wenn man den historischen Quellen Glauben schenken darf, hielt Erzherzog Maximilian von Österreich im April 1552 mit seinem Hofstaat feierlichen Einzug in Wien. Die Aufmerksamkeit der Wiener Bevölkerung galt dabei einer aus der Menge majestätisch herausragenden Kreatur – und damit ist nicht der Erzherzog gemeint, sondern ein stattlicher indischer Elefantenbulle, welcher der Nachwelt unter dem Namen Soliman überliefert ist. Als Geschenk des portugiesischen Hofes unter König D. João III an den durch dynastische Verknüpfungen verwandtschaftlich verbundenen Maximilian gelangte der Elefant zunächst von Lissabon nach Valladolid. Auf seinem Weg von Spanien über Genua, Mailand und Tirol bis nach Wien überquerte der Elefant samt erzherzoglichem Tross mitten im winterlichen Schneetreiben die Alpen. Wenngleich der indische Dickhäuter Mitte des 16. Jhs. als exotische Rarität berechtigterweise ungläubiges Staunen hervorrief, hatte die Weitergabe tierischer Geschenke seitens der portugiesischen Krone an europäische Souveräne durchaus Tradition: 1514 und 1515 waren portugiesische Delegationen mit einem Elefanten und einem Nashorn indischer Provenienz zu Papst Leo X. nach Rom entsandt worden, wobei bedauerlicherweise nur erster sein Ziel lebend erreichte. Unser Elefant Soliman jedoch erreichte Wien bei vollem Bewusstsein – und inspiriert von einem Besuch in einem Salzburger Restaurant mit dem vielversprechenden Namen „Der Elefant“, zeichnet José Saramago in seinem Roman „A Viagem do Elefante“ voller Ironie und allerlei grotesken Begebenheiten die Reise des von seinem Mahout geleiteten Elefanten von Lissabon nach Wien nach. Die Groteske wird dabei auf die Spitze getrieben, als Soliman vor der Kirche des Hl. Antonius in Padua den als „Wunder“ gefeierten Kniefall probt und sein gewitzter Mahout einen lukrativen Handel mit Elefantenhaaren zur Behandlung von Haarproblemen betreibt. Fast wäre man als Leser geneigt zu glauben, dass sich die Geschichte exakt so zugetragen habe, würden uns nicht die Anachronismen des sich unablässig einmischenden Erzählers den metafiktionalen Charakter vor Augen führen. Einmal mehr verschwimmen bei Saramago die Grenzen zwischen historisch verbürgter Realität und Fiktion, oder vielmehr, der Suggestion des Romanschreibers, „a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do seu direito de inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato“. Damit wird Saramagos poetologisches Konzept erkennbar: Der Dichter darf nicht nur lügen, er muss es sogar, um die Lücken zu schließen, die von der als selektiv und vorurteilsbehaftet monierten Geschichte (Historiografie) zurückgelassen werden – “vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso“. Folgende Fragen gilt es in diesem Zusammenhang zu erörtern: Gibt es überhaupt eine historische Realität? Wie ist der narrative Umgang damit? Und wie viel Fiktion steckt in Geschichte selbst?
Zitate: José Saramago: A Viagem do Elefante. 7a ed., Lisboa: Caminho, 2008, S. 226f.
José Cândido de Oliveira Martins (Braga)
Memorial do Convento de José Saramago: crítica e utopia
Editado em 1982, poucos anos após a Revolução de 1974, o romance de J. Saramago oscila entre a anamnese histórica e o esconjuro político-ideológico. Ao recriar ficcionalmente a construção de Mafra, a voz narrativa de Saramago investe com violência crítica contra o Portugal joanino. Servindo-se da sátira e do grotesco, a palavra literária assume-se como forma comprometida de denúncia da exploração e das injustiças sobre os humilhados e ofendidos, em nome do ideal de uma sociedade mais justa e igualitária, enunciada pela modernidade ideológica.
Referências:
MARTINS, J. Cândido Oliveira (2008), “Memorial do Convento de José Saramago: intertexto, interdiscurso e paródia carnavalizadora”, in Corradin, Flávia & Jacoto, Lilian (org.), Literatura Portuguesa, Ontem, Hoje, São Paulo, Ed. Paulistana, pp. 91-116.
REIS, Carlos (1998) Diálogos com Saramago, Lisboa, Caminho.
SEIXO, Mª Alzira (1999), Lugares da Ficção em José Saramago, Lisboa, IN-CM.
Ângela Maria Pereira Nunes (Mainz/Germersheim)
Der Spanische Bürgerkrieg als portugiesischer Erinnerungsort: Zur Darstellung der Guerra Civil bei José Saramago
Saramagos Auffassung von Geschichte ist der der französischen Historikerschule der Annales und der Nouvelle Histoire eines Pierre Nora, Georges Duby oder Jacques Le Goff verwandt. Sehr aufschlussreich ist in diesem Zusammenhang sein zuerst im Jornal de Letras, Artes e Ideias 1990 veröffentlichter Artikel mit dem Titel Geschichte und Fiktion. In Saramagos O Ano da Morte de Ricardo Reis entsteht ein besonderer Spannungsbogen zwischen Fiktion und Geschichte durch das Einhauchen von Leben in die literarische Figur des Ricardo Reis und ihre Platzierung in das historische Jahr 1936, das Jahr, in dem sich der Estado Novo in Portugal insbesondere vor dem Hintergrund des spanischen Bürgerkrieges konsolidiert. Saramago zeichnet hierbei die Figur des Ricardo Reis, wie sie von Fernando Pessoa erdacht wurde, nach und konfrontiert ihr fiktionales Werk sowie die ihr inhärente Lebensphilosophie des Weise ist, wer sich mit dem Schauspiel des Welttheaters begnügt mit der Realität des Jahres 1936. Hierbei geht Saramago der Frage nach der gesellschaftspolitischen Rolle von Kunst nach. Aus der als Mosaik von Zitaten teils literarischer, teils außerliterarischer Texte konstruierten Romanstruktur ergibt sich eine labyrinthische Erzählweise, die den Eindruck allgemeiner Orientierungslosigkeit vermittelt. Die in der Literatur übliche Verknüpfung mit dem Spiegelmotiv erlaubt im Roman nicht nur eine Raumerweiterung, sondern auch eine Umkehr von Fiktion und Wirklichkeit. Dieses sich durch die Vermischung der Ebenen der Wirklichkeit und der Fiktion ergebende labyrinthhafte Relief des Erzählten fordert den Leser in Borges‟ Sinne zur scharfsichtigen Aufklärung eines Rätsels auf, das bei Saramagos Roman in der erzählten politischen Situation des Jahres 1936 sowie in der Auseinandersetzung mit ihr begründet liegt.
Rosângela Divina Santos Moraes da Silva (Coimbra)
O imaginário e a transcendência em A Ilha Desconhecida
O homem, desde de que tomou consciência de si, almeja e procura a transcendência. A transcendência é uma busca constante do ser humano na tentativa de desvendar as duas pontas obscuras que o aprisiona: os mistérios de origem e de além morte. Esse desejo de romper e ultrapassar os limites da existência material, do mundo físico, surge quando o homem primitivo toma a noção de sua condição essencialmente humana e sente-se perdido em meio aos seus questionamentos sobre o que é, o que faz neste mundo e para onde seguirá após sua morte. É justamente por isso, que ele tem a necessidade contínua de manter um elo entre a efemeridade da vida, sua fugacidade e a eternidade. Para tanto foram e são criados mitos, rituais. A morte é concebida, assim, como um rito de passagem para uma outra dimensão cósmica, misteriosa, fértil assim como é a própria vida. Nesse contexto, surge o primeiro deus e após este vários outros como fonte de explicação para todas as indagações humanas e também como forma de amenizar os conflitos e os embates do mundo hostil que trazia insegurança, angústia, tristeza e medo. Assim como houve a criação de uma divindade protetora, benevolente capaz de resolver tudo aquilo que era impossível à humanidade, os mitos e rituais foram cristalizando-se no imaginário das pessoas como formas de negar e vencer o tenebroso Cronos. A morte temida, aterrorizante, toma essa conotação de rito de passagem, pois aquela é pintada por transparências metafísicas em que todos têm condições de enfrentá-la, negá-la, de transcendê-la. A porta que se abre à consciência desperta é onírica e imaginária, em que a arte – sublimação do espírito humano – revela-se como manifestação humana plena de transcendência e desveladora de um mundo interior desconhecido, cheio de mistérios e surpresas inigualáveis, perceptível por um conjunto de imagens e suas relações que constituem o pensamento humano de todas as camadas culturais ao longo da história.
Dessa forma, o imaginário torna-se o ponto de equilíbrio entre a precariedade da vida e a vontade do homem de transcender-se, vencendo o tempo e consequentemente a morte. Nesse aspecto, a obra O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, constitui-se num exemplo perfeito, pois metaforiza, através das imagens místicas, a trajetória a ser percorrida por qualquer ser humano ao fazer a travessia da vida para a morte, quer se a deseje ou não. No caso, o desejo do homem do barco de empreender a viagem rumo à Ilha desconhecida. Trata-se, portanto, este trabalho de uma abordagem do imaginário respaldada no semantismo das imagens proposto por Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, tendo como objeto de análise a obra de José Saramago, na qual se busca reconhecer a organização dinâmica do mito, sobretudo, o da morte, sob o feixe de constelações de imagens estruturadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes, desenvolvidos dentro de um mesmo tema arquetipal.
Palavras-chave: Mito, Semantismo, Símbolos, Imaginário
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes.
BRANDÃO, Junito.(1991). Dicionário Mítico-Etimológico. v.1. 3 ed.. Petropólis: Vozes.
BRUNEL, Pierre.(1998). Dicionário de Mitos Literários. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio.
CAMPBELL, Joseph. (1999). A Imagem Mítica. 2 ed. Campinas: Papirus.
DURAND,Gilbert.(1997). As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arqueologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes.
___ (1998). O Imaginário: ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel.
SARAMAGO, José. O Conto da Ilha desconhecida. 3ª.reimpressão. Companhia das Letras.
TURCHI, Maria Zaira (2003). Literatura e Antropologia do Imaginário: Uma mitocrítica dos gêneros literários. Brasília: Universidade de Brasília.
Andreas Schor (Villars-sur-Glâne)
A Mudança da Utopia nos Primeiros Romances de Saramago
A utopia no sentido de uma maneira de pensar que, consciente ou inconscientemente, não tem em conta a realidade dos seus projectos, reaparece em todos os primeiros romances de Saramago. O autor emprega o conceito no seu significado original ao imaginar uma sociedade ideal com uma ordem social justa. Os romances costumam encenar esta forma de utopia através de um grupo de pessoas que se precisa impor a um ambiente hostil. Em Levantado do Chão, a utopia duma sociedade justa contrasta com o poder total do latifúndio, do exército e da igreja, poderes que chegaram a oprimir gerações de seres humanos. Quando nasce a representante de uma nova geração, o narrador inicia um discurso bíblico, que será alterado e transformado num discurso secular e marxista, para justificar uma sociedade socialista que melhorará as condições de vida dos seres humanos. Em Memorial do Convento, Baltasar e Blimunda levam uma vida ideal em pleno século XVIII em Portugal, uma época caracterizada pelo poder absoluto da monarquia e da igreja. Os dois protagonistas são caracterizados como representantes da classe baixa, embora não possamos apreciar no romance uma luta de classes propriamente dita. Baltasar e Blimunda arranjam-se com um alto representante da igreja e com o rei para construirem uma máquina de voar, pondo em prática uma invenção utópica desde a perspectiva do seu tempo. Em A Jangada de Pedra, a Península Ibérica separa-se do resto da Europa e bóia no Atlântico. Nas circunstâncias caóticas que acompanham esta separação, cinco habitantes da Espanha e de Portugal tentam realizar a utopia de uma coexistência pacífica durante uma viagem pela Península Ibérica, agora transformada em ilha. Os cinco protagonistas apresentam caracerísticas de represantes de uma classe média com formas de pensar modernas. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, um poeta com um ideal de vida epicúrio e estóico entra na realidade histórica dos anos 30 em Portugal, reconstituída pelo narrador. Confrontada com esta realidade, a utopia poética é questionada e a vida do poeta se revela muito distante dos seus ideais. Talvez este romance seja a obra-chave para uma leitura da utopia em Saramago.
Bibliografia
Schor, Andreas 1997. Schreiben gegen Mythen. Die Romane von José Saramago. Bern: Peter Lang.
Fernando Venâncio (Amsterdam)
José Saramago: o ritual de uma voz-off portuguesa
José Saramago criou uma „voz literária‟ própria. Por uma vez, isto não é um cliché. O „estilo‟ saramaguiano (o autor assumiu o termo) é reconhecível como intervenção lúdica, engenhosa, exploradora do inesperado e do paradoxal. Há, em Saramago, uma exteriorização compulsiva, próxima do exibicionismo. Não é caso único na tradição literária portuguesa (o autor não escondeu a sua dívida a António Vieira) e mesmo na sua geração (há-de confrontar-se a escrita de José Cardoso Pires). Este estilo sentencioso e prazenteiro foi construído em dois contos da segunda metade dos anos 70 e investido pela primeira vez no romance com Levantado do chão, de 1980. É uma voz-off que percorrerá toda a obra ficcional do autor e que contribuirá para o êxito ou o fracasso da sua prestação.